Miseráveis

Um homem que, se agarrando ao emprego como à beira de um precipício, lavava carros da brutalidade de touros – cinco de uma vez, e mais cinco depois destes e mais cinco. Ofegava como um pugilista. Chamava pelas bestas com passo firme e braços em potência plena. Parecia até que não sabia, e não sei nem se iria querer saber, mas lutava uma luta que jamais venceria.


Um olhar que, despertado de seu transe pelo meu, me fita no centro do cenho. Perdidamente certeiro, saía da vista baça de um indigente. Estava despejado no chão como um saco sujo, recostado à porta fechada do comércio, embaixo da marquise de uma loja de roupas finas, e vestia rasgos. Trajava pele morta, renegada. Foi numa noite fria de Santos. Ele ainda respirava.


Os livros que me deu Pablo, um morador das calçadas da Pedro de Toledo, enquanto ele esperava sua mulher pedir salsichas para seus cães, em frente a um açougue. Me pediu uns trocados. Respondi que estava desempregado. Ele de pronto compreendeu. Parece que se deu como satisfeito quando percebeu que tudo o que teria seria minha atenção. Conversei com o sorriso de Pablo por uns parcos minutos.

Até que chegou Rosana, trazendo as salsichas, que logo os cachorros sugaram para dentro de suas barrigas. Li nos olhos deles, quando se juntaram um ao rosto do outro, o desespero. Deve ser assim o dia inteiro.

Os livros que Pablo me deu, depois de um rompante de inspiração aceso pela emoção frágil de Rosana, eram de pornô-de-avó. Ele me deu porque eu lhe havia dito ter cursado Filosofia. Muito pouco curioso, os aceitei com muito entusiasmo. Eu não tinha nada para dar a Pablo, mas ele inventou alguma coisa para me dar. Por quê? Já não tenho tudo? Já não tenho sorte? Só não tenho emprego. Mas Rosana logo tratou de me dá-lo também dentro de si: “oraremos para que você consiga um trabalho”.

Rosana e Pablo me ensinaram que quem nada tem é porque não tem mais nada a não dar.

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