Vida Doméstica

A vida doméstica me arrebata.

Me chama só uma vez e já me derramo no sofá, esparramando minhas pernas no tapete. Hoje não dá – está chovendo e são sete e meia da manhã.

O desemprego conjurou a realidade da espera em minha vida. As férias me agarraram com suas mãos limpas, e agora me encontro antisséptico. Não há grito que chegue em meus ouvidos, nem chamado que penetre minhas paredes, ou qualquer suspiro que me rompa. O que há sou eu, o cigarro aceso, e um país nublado, com nuvens pesadas de norte a sul, tomado pelo abraço gélido de uma frente fria.

Saio do sofá e vou para a janela: mudança de perspectiva. Trouxe da cozinha caquis com maca peruana em pó e sementes de chia, e três dedos de café amargo. Em cada sorvida, respiro um ar calmo. O dia está parado. Cada partícula em seu lugar próprio. O instante foi esticado, e enfim abarca alguma coisa: a existência inteira. Impossível é envelhecer. Vi meus cabelos untados de abacate, os vi grandes e grossos, esparramados como minhas pernas. “Que estou fazendo aqui?”, pensei. “O que eu poderia estar fazendo aqui?”. No quarto vejo meu amor dormir, e reparo em quanto o mundo é bom – mas de um jeito muito pouco, para uma minoria bem sortuda. Tive sorte, há fortuna.

O dia passa e a vida doméstica me esculpe. Despeço-me dos homens. A partir de amanhã, encontrarão meu rosto talhado no interior de uma almofada.

Brasil do Ódio

Pelo menos aquele em que vivo.

Queria saber donde vem esse ódio: acredito que seja daquela violência estruturalizada em nosso povo, espremida da escravidão do povo negro, do povo indígena, do chão, da mata, e do boi. O problema de ser brasileiro é que ouviremos para sempre os gritos de nossas cicatrizes.

Aqui, todo mundo se odeia. A maioria dos discursos do cotidiano são discursos de ódio. Outro dia ouvi que “time pequeno tem mais é que se foder”; noutro, ouvi que “o Lula não está sofrendo na prisão, tá na maior mamata”; noutro ainda vi o vídeo dos manifestantes com a camisa da CBF arrancando a faixa da UFPR, que dizia “em defesa da educação”.

Queria saber uma coisa: estes brasileiros não sabem que a escravidão no Brasil já terminou? Não sabem que, na continuidade de tal término, teria sido necessário que cortássemos pela raiz a violência que se agarraria em nossa carne? É exatamente por isso que violência não se combate com violência, mas sim com jardinagem.

Quando, afinal, meu Brasil se livrará do medo de pôr suas mãos na terra?

Os Relógios de Santos

Você já deve ter notado a falta de alguma coisa na cidade, e já deve até saber a que me refiro. Mas, àquele que não fizer ideia do que estou dizendo, já logo adianto: retiraram os relógios das ruas de Santos. Ela não pode mais ser o que sempre foi porque seus relógios foram sequestrados.

Trata-se de uma mudança radical, de um sintoma da sina de nosso modo de ser: a clausura nas próprias coisas. Pois “sempre haverá de ter o meu; o meu é tudo o que existe, e quanto mais for meu, melhor para mim e para os meus”, diz o espírito do nosso tempo. Nossa cidade não terá mais aqueles monumentinhos, remanescentes de um passado não muito distante, em que se informar do horário enquanto se estivesse na rua podia ser algo da esfera do nosso, e não do meu.

Daqui pra frente sacaremos nossos celulares para ver que horas são. Poucos protestarão – muitos até acharão insignificante a retirada dos relógios, e no futuro não haverá senão uma centena de velhos para contar aos jovens como era antigamente, e de como sentem falta da consulta do horário – e da temperatura, sempre errônea – ser um ato comum.

Nesse dia, os velhos serão sortudos. Poderão se gabar de ter vivido numa época em que se via números numa tela maior.

Danilo Gentili

Assisti à entrevista que o Danilo Gentili deu ao Marcelo Tas, no Provocações, da Cultura. Essa entrevista foi um massacre. Quem conhece o programa já deve imaginar mais ou menos, mesmo que não tenha visto.

Mas, para quem ainda não conhece, como posso ilustrar? O Provocações não é como um programa de entrevistas convencional. Ele não quer exatamente saber o que a pessoa faz da vida dela fora dali, mas sim o que ela é capaz de pensar naquele momento, frente a questões que costumeiramente não lhe fazem. O que aconteceu com o Danilo Gentili foi um encurralamento. Ao invés de encontrar uma sala clara com uma mesa morna, encontrou uma luz fria e a careca crítica do Tas. Tratou-se de um encurralamento necessário – porque mostrou que o Danilo Gentili é um cara triste, que resolveu não viver o luto da perda do pai, e que depois disso passou a viver do escárnio, próprio e dos outros – primeiro para sobreviver psicologicamente, e depois para enriquecer.

No caso do Danilo, sobreviver do escárnio não deu certo, porque do jeito que ele faz, irresponsavelmente, acriticamente, como alguém que “não gosta de quem gosta de Paulo Freire” e “não sabe de Paulo Freire porque não pesquisou sobre ele” já que não se interessa, uma vez que o Paulo Freire “fala igual um estelionatário”, não ajuda a ninguém e tampouco a ele próprio. É um ignorante de classe média comum, mas que tem um microfone grande: alguém que não leu e que não lê; que é cristão e que não reflete sequer sobre os próprios princípios religiosos, e ao invés disso os utiliza para justificar sua crueldade consigo mesmo e com sua dor profunda. Ele tem um trauma grave, e não foi educado de modo que pudesse perceber seu perigo por si próprio.

O Tas soube arrancar isso dele. No final da entrevista, ele deu respostas sinceras. Na verdade, no geral ele parece ter dado respostas sinceras – o problema é que a sinceridade do Danilo se baseia numa sinceridade derivada de uma noção de verdade que não inclui a atitude da suspeita, e daí se acaba tomando mentiras como discurso certo. Sinceridade assim é mentirosa mesmo que não queira sê-lo.

Veja bem, se houve uma tentativa de humanização do Danilo que poderia servir de algo útil para ele futuramente, acredito que não tenha dado certo. Ele não sai dali fortalecido. Quem vê a entrevista toda, percebe. Não parece que tentaram humanizá-lo, mas que tentaram expor o humano que pode haver dentro dele, enterrado. Mostraram que o Danilo Gentili é o retrato fiel de nosso destino mais trágico: a depressão ignorante.

Íntimo de gato

Me parece que a maior intimidade que se pode ter com um gato é vê-lo vomitar. Trata-se de um momento longo, de uma hora vulnerável. Quando vomita, ele tem de abaixar a guarda, e aguardar. Aguardar, em espasmos crescentes, a saída do material indesejado.

Não há defesa nem garras: só humilhação própria.

Ele dá umas tossidinhas de criança no final de cada ciclo de seu movimento, e não há nada que você possa fazer para acudi-lo. Vomitar é um ato de independência. Quem vomita demonstra autonomia sobre seu enjoo, como quem diz que o controle não está perdido. Ver um gato vomitando é participar da autonomia dele: só você ali; você e ele sozinhos num chão pela casa, ansiosos pelo parto de uma náusea.

Meu pé de manjericão


A vida me mandou uma muda de manjericão e me mandou plantar. Assim o fiz. De um jeito muito débil, mas o fiz. De início, tudo normal. Não diria que estava feliz, mas estava verde. Suas folhinhas estavam vivas de um jeito comum. Diariamente eu as examinava: cheirando, sentia molho de tomate; tocando, sentia pulsar a seiva; com os olhos, via brotinhos minúsculos nascendo salpicados. O grande problema é que tenho medo de regar. É mais fácil umedecer demais a secar demais. As regas deixo para as mãos sem medo de minha mulher. O que acho impressionante nela é a liberdade de morar entre o zero e o um. Se a planta morre, as mulheres a revivem, e se qualquer coisa de errado acontece, elas encontram melhor que qualquer homem o ponto médio invisível entre um final e outro, e estabelecem a ponte que salva, mesmo que custe suor e sangue. Não há possibilidade que se esconda do secreto feminino.

Temos um Lírio da Paz no apartamento, a que chamamos Lório. Há um tempo ele estava praticamente morto, mais murcho que um pano. Não há salvação – o homem cessa na condenação. Não há salvação porque é necessário que não haja. O masculino é míope. O feminino é fantasmagórico. Ela enxergou, no caso de Lório, o meio termo ignorado: “vamos cortá-lo bem curtinho”. Cortá-lo! Ela e sua tia o cortaram então até o último caule fraco. A raiz estava boa. Eu não sabia que plantas são divididas em partes e que cada uma tem seu papel na suculência de suas vidas. Hoje Lório cresce como cabelo.

Estão belas e felizes todas as plantas que ela cuida. Das que temos, nove são dela. Uma só é minha: Cão, o Manjericão – que está morrendo. Está dada a sentença. O que me resta é observar seu devoro pelos mosquitinhos de fungo. Cada instante de sofrimento de Cão é um acúmulo a mais de dor em mim. Queria usar suas folhinhas para tantas macarronadas mais… – Mas tenho medo de regar. Não entendo de raízes. Não cuido. Deixo à própria sorte. Minha planta morre.

Será por causa da plantinha peluda que está nascendo no canto do vaso? Será que suas raízes pestilentas guerreiam com as de Cão? Seu pêlo parece pêlo de mariposa, que parece uma doença que voa. Que tem essa plantinha peluda? Quanto mais ela cresce, mais bichos eclodem da terra. Se estivesse podre não chocava ovos de insetos. O que tem no vaso é vida apodrecendo vida. Há chagas negras na minha planta. Suas folhas caem sozinhas, e as que ainda estão firmes se contorcem para dentro na tentativa de ignorar o que virá. Os brotinhos se recolheram. As portas do nascimento estão se fechando.

Quanto mais morre o manjericão, mais cresce a pequena planta fúngica. E este é o único vaso que é meu.

Vida Prímeva

Vida Prímeva significa: mato.

É donde vêm os bichos;
É onde se escondem suas trilhas;
É onde ocorre a caça;
É de onde sai planta.

Onde não chega ninguém proclamando "sou rei!"

Pois, se assim o fizer,
Os bichos o comem,
As trilhas lhe fogem,
A caça lhe caça,
A planta o prende.

A terra o enterra.

Só de tempos em tempos consigo ter um contato, bem sucinto, com esse tipo de vida.

Pois o que é que tenho na maioria dos dias? Uns botões para apertar, um limite de quatro paredes, uma geladeira bem feita, um conforto sólido, um sono saudável, uma agenda.

A Vida Prímeva é aquela que não possui explicação apropriada que não leve em conta tão somente a geologia antiga das estações do ano. É uma vivência dominada de corpo e alma pelo funcionamento vegetativo da vida da crosta. É uma vida que não se comunica, anterior ao primeiro animal falante. Frente a ela, somos simples: protuberâncias numa superfície lisa.

Vejo agora um filhote de peixe cascudo: ele nada.

E vive. E vive. E vive, e vive, e vive. Ele vive! Compreendem? Ele vive a Vida. Crescerá e será comido. Não terá vizinho, nem rua nem endereço, só mar e algas – e outros peixes, que assim como ele, moram nos arredores florestais do chão.

Não faço nada

O Brasil não é mais um país tropical. O Brasil vem sendo tão somente um país dos trópicos. O verão ainda brilha como lantejoulas em nossas águas, sim – mas não chega nem perto do brilho vívido de alguns anos atrás. O brilho de um povo acolhido. A radiância de um povo que, aquecido como uma gema, não precisa pedir por nada, sua vida placidamente brotando de sua própria essência, protegida, salvaguardada para o futuro. As coisas não eram exatamente como queríamos, nunca foram, mas a esperança seguia nutrida.

Participamos deste Brasil. Que fizemos por ele?

O destruímos. O odiamos. Não fizemos muito por ele. Mas fizemos muito com ele. Fizemos por ele o que faríamos por nós mesmos – berramos. Fizemos com ele o que faríamos com um prédio que cansa o horizonte – implodimos.

Eu mesmo não fiz nada. De dentro da minha casa não consigo fazer nada. Não sou universitário, não tenho lugar de fala, só tenho um gato e meia dúzia de palavras que digo no interior de mim mesmo. Não fiz muito. Votei certo só. Mas isso não basta. Nunca nada basta quando de nós temos que tirar, diariamente, milhões e milhões de pessoas de dentro de nós. Parece até que não fiz nada. Fiquei olhando tentanto entender – e ao fazê-lo não podia, não entendia nada. Passou o tempo e o jacaré pegou todo mundo. Mas que podia fazer eu, de dentro de minha casa isolada, com meu gato isolado? Não podia fazer nada.

Mas algum dia comecei a fazer alguma coisa? Um homem branco, culpado como todo homem branco; um gato siamês, sem culpa nenhuma – podem por um acaso fazer alguma coisa além de nada? Fazer qualquer coisa pelo povo? Uma coisinha só? Nem que seja num futuro bem distante? Acho difícil.

Não sei. Estou confortável como uma tartaruga. Por isso é que sou culpado: pelo meu espírito de tartaruga.

Não há emprego. As crianças perderão seus livros para seus pais ganharem armas. Índio é obstáculo. Árvore é dinheiro. YouTube é propaganda do governo. Twitter é propaganda do governo. Facebook é campo de concentração de ódio. Me formei professor com medo de dar aula. Quem liga? Sou branco e não fiz nada. Fiquei em cima de minha brancura e me tornei apático.

Queria ter o peito aberto e uma realidade diferente, em que eu fosse diferente, e pudesse falar coisas diferentes, coisas que fizessem tornar o caldo, que pudessem dar qualquer coisa para o mundo em troca daquilo que o mundo me dá todo dia. Mas não levo jeito pra isso. Minha vida não dá jeito nisso. Estou aqui falando de mim enquanto o melhor é falar do país. Mas quem mora nesse país sou eu – e eu, não faço nada. Como fazê-lo?

Indignar-se é fazer alguma coisa? Certo que não. Indignar-se é tornar-se, e não fazer-se. É tornar-se alguém movimentado no interior por fatos exteriores, e movimentado como um mar que só não vira o navio porque ele foi feito pra boiar e porque o este mar é um mar fraco. Sou o mar e sou o navio – quero virar o navio do governo, mas é o governo que tenta virar o navio que sou eu. Governo de ácaros. São minúsculos mas fazem espirrar.

Sinto-me impotente. É por causa de mim que estou impotente. Normal. Eu nunca soube achar caminhos de potência, sou míope. Os caminhos que acho são por acaso, à despeito de minhas mais sinceras tentativas de discernir a paisagem. Não sei criticar, não sei debater – me canso, fico triste, acontece um turbulência dentro de mim que não conheço e de que tenho medo. Ela me domina e eu fico confuso. Daí não consigo falar com ninguém e ninguém consegue falar comigo. Eu só odeio. Odiar é fazer alguma coisa? É sim. Mas odiar é odiar, e não gera nada diferente.

Mas não sou culpado de nada disso. Sou culpado mesmo é por ser branco e não passar fome. Sou culpado por não estar no lugar de nenhuma minoria pra sofrer e sentir na pele o que esse governo de ácaros faz com o povo, porque só assim é que se acorda, quando o governo dá oitenta tiros no carro do seu marido, e o mata. Nosso Presidente diz que não há racismo no Brasil, e que já encheu o saco esse papo que coloca brancos contra negros – mas não são essas as palavras do fuzil. Uma palavra certeira do fuzil é uma vida que se tira. Ainda mais oitenta. Um fuzil preto atirando num homem preto. Realmente não há racismo no Brasil. É que nosso Presidente fala a língua das armas.

Nosso Presidente fala a língua das metralhadoras. “Ratatatatatatá!” ouço ele falar na live de quinta. Meu ouvido dói de tanto não fazer nada. Não faço nada, e me dôo inteiro.

Queria ser meu gato, mas sou uma tartagura.