O Brasil não é mais um país tropical. O Brasil vem sendo tão somente um país dos trópicos. O verão ainda brilha como lantejoulas em nossas águas, sim – mas não chega nem perto do brilho vívido de alguns anos atrás. O brilho de um povo acolhido. A radiância de um povo que, aquecido como uma gema, não precisa pedir por nada, sua vida placidamente brotando de sua própria essência, protegida, salvaguardada para o futuro. As coisas não eram exatamente como queríamos, nunca foram, mas a esperança seguia nutrida.
Participamos deste Brasil. Que fizemos por ele?
O destruímos. O odiamos. Não fizemos muito por ele. Mas fizemos muito com ele. Fizemos por ele o que faríamos por nós mesmos – berramos. Fizemos com ele o que faríamos com um prédio que cansa o horizonte – implodimos.
Eu mesmo não fiz nada. De dentro da minha casa não consigo fazer nada. Não sou universitário, não tenho lugar de fala, só tenho um gato e meia dúzia de palavras que digo no interior de mim mesmo. Não fiz muito. Votei certo só. Mas isso não basta. Nunca nada basta quando de nós temos que tirar, diariamente, milhões e milhões de pessoas de dentro de nós. Parece até que não fiz nada. Fiquei olhando tentanto entender – e ao fazê-lo não podia, não entendia nada. Passou o tempo e o jacaré pegou todo mundo. Mas que podia fazer eu, de dentro de minha casa isolada, com meu gato isolado? Não podia fazer nada.
Mas algum dia comecei a fazer alguma coisa? Um homem branco, culpado como todo homem branco; um gato siamês, sem culpa nenhuma – podem por um acaso fazer alguma coisa além de nada? Fazer qualquer coisa pelo povo? Uma coisinha só? Nem que seja num futuro bem distante? Acho difícil.
Não sei. Estou confortável como uma tartaruga. Por isso é que sou culpado: pelo meu espírito de tartaruga.
Não há emprego. As crianças perderão seus livros para seus pais ganharem armas. Índio é obstáculo. Árvore é dinheiro. YouTube é propaganda do governo. Twitter é propaganda do governo. Facebook é campo de concentração de ódio. Me formei professor com medo de dar aula. Quem liga? Sou branco e não fiz nada. Fiquei em cima de minha brancura e me tornei apático.
Queria ter o peito aberto e uma realidade diferente, em que eu fosse diferente, e pudesse falar coisas diferentes, coisas que fizessem tornar o caldo, que pudessem dar qualquer coisa para o mundo em troca daquilo que o mundo me dá todo dia. Mas não levo jeito pra isso. Minha vida não dá jeito nisso. Estou aqui falando de mim enquanto o melhor é falar do país. Mas quem mora nesse país sou eu – e eu, não faço nada. Como fazê-lo?
Indignar-se é fazer alguma coisa? Certo que não. Indignar-se é tornar-se, e não fazer-se. É tornar-se alguém movimentado no interior por fatos exteriores, e movimentado como um mar que só não vira o navio porque ele foi feito pra boiar e porque o este mar é um mar fraco. Sou o mar e sou o navio – quero virar o navio do governo, mas é o governo que tenta virar o navio que sou eu. Governo de ácaros. São minúsculos mas fazem espirrar.
Sinto-me impotente. É por causa de mim que estou impotente. Normal. Eu nunca soube achar caminhos de potência, sou míope. Os caminhos que acho são por acaso, à despeito de minhas mais sinceras tentativas de discernir a paisagem. Não sei criticar, não sei debater – me canso, fico triste, acontece um turbulência dentro de mim que não conheço e de que tenho medo. Ela me domina e eu fico confuso. Daí não consigo falar com ninguém e ninguém consegue falar comigo. Eu só odeio. Odiar é fazer alguma coisa? É sim. Mas odiar é odiar, e não gera nada diferente.
Mas não sou culpado de nada disso. Sou culpado mesmo é por ser branco e não passar fome. Sou culpado por não estar no lugar de nenhuma minoria pra sofrer e sentir na pele o que esse governo de ácaros faz com o povo, porque só assim é que se acorda, quando o governo dá oitenta tiros no carro do seu marido, e o mata. Nosso Presidente diz que não há racismo no Brasil, e que já encheu o saco esse papo que coloca brancos contra negros – mas não são essas as palavras do fuzil. Uma palavra certeira do fuzil é uma vida que se tira. Ainda mais oitenta. Um fuzil preto atirando num homem preto. Realmente não há racismo no Brasil. É que nosso Presidente fala a língua das armas.
Nosso Presidente fala a língua das metralhadoras. “Ratatatatatatá!” ouço ele falar na live de quinta. Meu ouvido dói de tanto não fazer nada. Não faço nada, e me dôo inteiro.
Queria ser meu gato, mas sou uma tartagura.